Aos
86 anos, Napoleão Tavares Neves cultiva uma memória impecável, um currículo
extenso e mil histórias de encantar. Autor de livros sobre o cangaço, cronista
talentoso e memorialista por vocação, ele foi também um dos primeiros médicos a
se estabelecer em Barbalha, apadrinhado por Pio e Leão Sampaio, que lhe
ensinaram que Medicina se faz com o coração. Para a CARIRI, Napoleão resgatou
relatos que a história oficial ainda desconhece e que lhe foram contadas pelo
povo simples do sertão, gente que pediu a bença a Padre Cícero e que olhou nos
olhos de Lampião.
“Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo…”, Socorro Neves
interrompe o silêncio mal o carro sai de Barbalha, recitando todo o Salmo 90.
Segurando as contas do terço entre os dedos, ela reza por uma viagem segura ao
longo dos 137km até Porteiras, enquanto o marido, Napoleão Tavares Neves, leva
no colo um estojo com estetoscópio e prontuário e fala com empolgação sobre o
que vê na paisagem já seca de agosto. “Aquele é o ponto mais extremo do sul da
Chapada do Araripe”, ele ensina. Depois se vira para o banco de trás e
pergunta, apontando mais ou menos ao leste: “Já foi em Missão Nova? Todo mundo
acha que a primeira igreja do Cariri é a Sé do Crato, mas é uma que foi
construída pelos capuchinhos bem ali”. Já chegando ao destino, o doutor mostra
um lugar no horizonte: “Ali nas Guaríbas morava Chico Chicote. Sabe a história
de Chico Chicote? A manhã em que a tropa do Tenente Zé Bezerra o atacou, em
1927, foi uma verdadeira epopeia nesse sertão”.
O rosário de Socorro durou a distância entre Missão Velha e Brejo Santo,
mas a aula de geografia e história com Napoleão, se deixar, dura um dia
inteiro. Naquela manhã de domingo, ele visitava as irmãs, Ranilda e Romilda, no
distrito do Saco, na casa onde seu pai construiu um dos oito engenhos de rapadura
que adoçaram a economia de Porteiras, quando este ainda era um distrito de
Jardim. Porteiras tornou-se um município independente, depois veio a ser
rebaixado novamente a distrito, ligando-se à cidade de Brejo Santo até se
emancipar de vez, em 1953. O sítio foi basicamente batizado pela própria
Chapada do Araripe, que o envolve como em um saco – visto de cima, é como se
tivessem comido a Chapada em uma dentada. A casa de Joaquim Neves e Maria
Tavares, pais de Napoleão, foi erguida justamente no recôndito desse U de 900
metros de altura, um semicírculo de cerca de 20km de comprimento, oito bocas
d’água e uma imensidão verde, resistente às mais duras secas.
Do paraíso onde Napoleão passou os primeiros anos de sua infância ainda
se avista, a duas léguas, a casa de Manoel Rosendo, seu avô materno, conhecido
como Né Rosendo, para onde o menino corria todas as manhãs, montado em um
cavalo de pau. Agora octogenário, Napoleão apoia uma bengala na mão e, na
outra, carrega seu kit médico, aguardando a oportunidade de realizar uma
consulta. Nem o chão entre as duas casas é mais o mesmo, já que a erosão e as
chuvas torrenciais que desceram da serra nesse século que se passou criaram
morros na área onde antes pastavam 800 cabeças de gado e existia uma plantação
de cana-de-açúcar que era moída para mais de 1.500 engenhos do Cariri.
TODA A SABEDORIA DO
MUNDO
Quando deu à luz Napoleão, no dia 17 de setembro de 1930, Maria já
sofria há três dias as dores do parto. “Mas, também… Com uma cabeça grande
dessas!”, diz o doutor mostrando o chapéu número 60, feito sob medida, e
caçoando de si mesmo. O parto difícil foi feito por Pio Sampaio, médico que
anos depois trabalharia com o menino que ajudou a pôr no mundo. Napoleão nasceu
na fazenda do avô paterno, o Coronel Napoleão Franco, no Sítio Belo Horizonte,
em Jardim, quando a cidade era só um curto trecho que começava na ponte sobre o
Rio das Piabas e acabava na Rua da Baixa.
Jardim e Porteiras são cidades vizinhas, separadas pela serra alta,
por onde a estrada faz o longo contorno que Napoleão percorria a cavalo. Nos
anos em que viveu aos pés da Chapada, ele brincava de correr entre as caldeiras
do engenho e de acompanhar os vaqueiros na lida. A convivência com os
sertanejos que trabalhavam no Saco marcou a personalidade do pequeno Napoleão,
impressionado com as histórias do cangaço, que para sempre assustariam sua
mente de menino e, mais tarde, formariam o historiador que ele viria a ser.
de menino e, mais tarde, formariam o historiador que ele viria a ser.
No sítio Saco com as irmãs, Romilda e Ranilda.
Montado em seu cavalo, ele fingia ser vaqueiro também, assistia aos
aboios e pegas de boi, levava as reses para pastar e comia o típico almoço do
sertanejo: farinha, rapadura e carne assada. “A carne do alforje é a mais
gostosa do mundo!”, ele diz com intensidade, quase gritando, e explica o segredo:
o sal impregnado no alforje sujo é o que dá o sabor, muito melhor do que a
carne da cozinha, com o sal semeado. Deitados na bagaceira do engenho, os
trabalhadores do Saco descansavam, admirando o céu estrelado, e aí então “a
conversa truava até uma hora da manhã”, ele recorda. Eram
pelejas de cangaceiros, estórias de trancoso e até aulas de
astrologia.
As falas mais marcantes daquele tempo vieram de Antônio Farosa, um velho
caboclo que parecia possuir toda a sabedoria do mundo. Sobre as estrelas cadentes,
ele alertava a Napoleão: se aquela estrela bater em outra, o mundo se acaba. “E
o que é que eu faço?”, ele perguntava. “Você reza: Deus te guie, Deus te guie,
Deus te guie!”, Farosa ensinava a evitar uma hecatombe. “Eu ficava morrendo de
medo, pensando: ‘eita rebuliço! Se ela bater e o mundo acabar, eu tô lascado!”,
Napoleão ri. Mas nem só de peripécias vivia o velho sábio. Ele passou para
Napoleão todo o conhecimento que tinha do Cariri – mística, natureza e cangaço.
O PAÍS DAS ALMAS
“O Saco é o país das almas. Lá todo mundo vê alma”, Napoleão explica
antes de contar a mais estranha de todas as histórias que ele presenciou, “A
única vez que eu vi darem uma surra num defunto foi lá”. O fato aconteceu
enquanto ele acompanhava o carregamento do corpo de um homem que morreu
empurrando lenha no talhado do engenho. “Eles vinham descendo com o defunto em
uma rede, até que um deles reclamou: ‘o defunto tá pesaaando’. Aí o
mais sabido gritou: ‘Para, para, para! Isso é porque o diabo não quer que a
gente leve ele pra igreja. Aí se escancha em cima da rede e faz pesar’. Eu
fiquei todo arrepiado quando ele disse isso. Depois entrou no mato, tirou um
galho de pau e deu uma pisa no morto. Enquanto ele dava, os outros
descansaram”, contou. Quando testaram o efeito da surra, alguém elogiou: “Ah,
agora tá manêro”.
Aos 12 anos, acompanhando o aboio de 200 reses de uma fazenda a outra,
Napoleão viu outro acontecimento, no mínimo mágico, digno de passagem em livro
de Guimarães Rosa. A caravana se deparou com a caveira de um boi morto na
estrada e, em vez de seguir caminho, todas os bois se puseram em torno do corpo
do bicho e choraram. “Uma coisa que eu nunca vi na minha vida. A coisa mais
linda. Os bois cavando em torno do irmão e urrando. Todo o gado, sem faltar um.
Os vaqueiros então tiraram o chapéu, puseram no peito e baixaram a cabeça”.
Maravilhado com o Cariri, o menino Napoleão começou a desconfiar que havia
muita história a ser contada. Ele então adquiriu os hábitos que definiram sua
personalidade e serviram para resgatar memórias dos caririenses: ele aprendeu a
perguntar e a ouvir. Em sua biblioteca, uma estante que vai do chão ao teto
guarda quase duas mil crônicas que já foram lidas em rádios de Barbalha e
Crato, contando o que ele escutou ou viu em seus 86 anos de vida.
Se Napoleão não conseguia dormir, amedrontado pelos cangaceiros, não
haveria como fugir: a sua avó materna, Ana Pereira Neves, a Donana, foi
madrinha de Luiz Padre, o famoso cangaceiro de Serra Talhada. Para completar, o
Saco era passagem de quem ia para Juazeiro do Norte através da Chapada. O
caminho de Lampião no Cariri era sempre o mesmo: ele entrava por Macapá (atual
Jati), ia direto para a Fazenda Piçarra (onde morava o amigo Antônio Teixeira
Leite), subia a serra pela Ladeira da Salva Terra (entre Brejo Santo e
Porteiras, onde Napoleão morava), até chegar na Serra do Mato (entre Barbalha e
Missão Velha). Para entender a peregrinação do rei do cangaço e seus cabras,
Napoleão recorria ao mapa sempre que ouvia as histórias da avó. “Donana me
contava muita coisa e eu fui gravando tudo na cabeça”, recorda. Devota do Padre
Cícero, ela se comunicava com o sacerdote por cartas. Uma correspondência em
particular, Napoleão se recorda. Donana escreveu se lamentando: “Meu padrim,
não posso subir ladeira, que me sinto cansada”. Ao que Cícero respondeu: “Isso
é anemia. Vá em Porteiras e compre ferro em pó”. O doutor pondera: “Ele era
muito prático, muito inteligente – pra a época e pra onde vivíamos”.
A terra encantada do Saco, em Porteiras, onde Napoleão viveu a infância.
NO CAMINHO DE LAMPIÃO
Quatro anos antes de Napoleão nascer, Lampião passou pela casa de Né
Rosendo pedindo para deixar sua montaria descansando e pegar emprestados oito
cavalos, para chegar bem apresentado em Juazeiro do Norte. Obviamente, Manoel
não negou. Pediu para o filho Rosendo Miranda, então com oito anos, ir ao
curral buscar os bichos para o cangaceiro. Esperto, o menino tentou uma façanha
arriscada: escondeu os cavalos que ele mais gostava e trouxe oito burros de
cambito, que Lampião aceitou. A cozinheira da casa de Né, Antônia Lúcia, contou
a Napoleão outra passagem de Lampião pelo Saco: quatro de seus cabras se
juntaram ao temido Horácio Grande para roubarem a fazenda. Antônia e Manoel,
armados com os dois únicos rifles da casa, colocaram os homens para correr.
José Roque, também morador do avô, contou a ele que, em 1927, andando pelo meio
do mato, entre Porteiras e Jardim, foi surpreendido pelo bando de Lampião.
Roque só conseguiu fugir quando começou um tiroteio entre os cangaceiros e
policiais que apareceram de repente.
Em 1938, Lampião morreu em Sergipe enquanto Napoleão acompanhava tudo
arrastando o dedo indicador pelo mapa do Nordeste e ouvindo as narrações
através do único rádio de Porteiras – o da sua casa. “Eu soube pela voz de João
Ramos, da rádio PRE9, que Lampião tinha morrido na grota dos Angicos”, recorda,
com uma memória espetacular. No ano seguinte, forçado a largar as brincadeiras
no canavial e as viagens com os vaqueiros, Napoleão se mudou para Jardim, a fim
de estudar. A tia Beatriz Neves, professora normalista na cidade, preferiu
educar o garoto em sua casa, em vez de mandá-lo para a escola. Nos anos que se
seguiram, Napoleão foi alfabetizado, se preparou para o exame de admissão no
ginásio e acompanhou o desenrolar da II Guerra Mundial pelo rádio, correndo
sempre para o mapa múndi. Foi quando descobriu que o mundo era maior do que o
vale encantado do Saco.
Aprovado no exame de admissão no Colégio Diocesano, ele se mudou para o
Crato, de onde voltava a cada 15 dias. O velho Farosa ficou sendo o portador que
o acompanhava no trajeto a cavalo. Saindo do Saco às 5 horas da manhã, os dois
chegavam no Crato às 17h. Era um dia inteiro de cavalgada e muita história,
enquanto o caboclo sábio ia deixando seu conhecimento com o amigo ainda
adolescente. Em um desses dias, descansando na mata em Barbalha, Napoleão viu
um morro com cinco cruzes. “O que é isso, Farosa? É um cemitério?”, ele
perguntou. “Não. Aí estão enterrados os Fuzilados do Leitão”, explicou onde
estavam os corpos de Lua Branca e outros quatro homens supostamente envolvidos
com o cangaço, fuzilados em 1928. Lua Branca era o último dos irmãos
cangaceiros de Barbalha que ficaram conhecidos com Os Marcelinos. Bom de Veras
e João 22 já haviam sido assassinados, sobrando apenas o mais novo deles.
Quando a Associação Pró-Memória de Barbalha quis reconstituir o local onde os
fuzilados estão sepultados, Napoleão foi a única pessoa a saber onde estavam.
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