sexta-feira, 31 de março de 2017

PEQUI ALIMENTA A ALMA DO POVO CARIRIENSE

                                     Aos 66 anos, Francisca de Souza cumpre um ritual que lhe acompanha desde criança:
                                                                    catar pequi na região serrana de Porteiras

Durante quatro meses por ano, de janeiro a abril, nativos da região do Cariri cumprem ritual transmitido de geração a geração. Homens e mulheres, jovens e idosos, andam incontáveis quilômetros por dentro das matas para colher a própria sobrevivência. A qualquer hora, seja dia ou noite, em grupo ou solitários, os catadores disputam cada espaço para conseguir o melhor apurado possível. O cenário lembra o de um garimpo, porém o ouro que brota da terra da Chapada do Araripe atende pelo nome de pequi.

“Se o Cariri fosse outrora trecho de terras, encravado num daqueles impérios, ou por outra na Grécia veneradora da natureza, teria igualmente a sua árvore sagrada – o pequizeiro. Mas estamos num país inteiramente cristianizado”, defendeu o escritor J. de Figueiredo Filho, no artigo “O Pequizeiro” (1939), numa comparação aos povos incas, no Peru, e os astecas, que veneravam a coca e o cacau, respectivamente. 

O povo da Chapada do Araripe também o considera como tal: "Nós não plantamos, quem tá zelando é a natureza, quem tá criando é Deus, então tá lá de graça para nós ir buscar", diz Ricardo da Silva, 41 anos, da Comunidade Quilombola dos Souza, em Porteira. Da mesma localidade, Francisco Sousa, 66 anos, refere-se igualmente ao presente da natureza: "Agora, o homem (atravessador) tá comprado barato, mesmo assim é vantagem, a gente não á comprando o pequi, tá é só caçando".

O fruto é responsável por uma cadeia produtiva protagonizada por centenas de pessoas. Não se sabe ao certo quantas são, mas encontramos várias delas durante nossa viagem ao Cariri, sobretudo em Crato, Barbalha, Jardim e Porteiras, onde se concentra um maior número de deles. Em geral são agricultores, que depositam no pequi a esperança para enfrentar anos consecutivos de seca.
Há os catadores, que garantem o sustento da família e os atravessadores, que pegam o fruto direto na fonte. Nesse comércio, negocia-se em milheiros. Mil frutos, no mês de fevereiro, quando a oferta cresceu, custavam cerca de R$ 80,00 na fonte. Alguns atravessadores comercializam no varejo, contudo quase sempre repassam para vendedores das barraquinhas das estradas, em mercados ou feiras do Cariri.
Há quem produz o óleo, a exemplo de Pedro Martins, de Jardim, no ofício há 50 anos. Outros capricham nos pratos culinários à base do fruto, sendo os mais famosos o baião de dois e a pequizada. E há os que pesquisam as propriedades (medicinais e cosméticas) desta planta nativa da Chapada do Araripe, cujo nome científico é Caryocar coriaceum.
“Essa espécie é exclusiva da nossa região. Na Europa, respeitam muito isso, aqui no Brasil não, acham que todo pequi é pequi. Não é não. É diferente do que existe em Goiás e Minas Gerais, por exemplo. O nosso tem mais óleo, o deles, mais açúcar. O nosso puxa mais pra cor creme e branca, o de lá é amarelo-ouro. Essas peculiaridades vieram de milhares de anos de evolução e precisamos valorizar”, afirma Willian Brito, engenheiro agrônomo e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Precisa-se valorizar o próprio pequizeiro. Relatos de catadores e gestores do meio ambiente revelam a preocupação de as árvores serem preservadas ou mesmo de outras brotarem. Os versos em cordel de Willian Brito são um aviso: “O cristão que com carinho/O piqui cuida em plantar/Contribuindo pra fome/Da pobreza aliviar/Deus e nossos ancestrais/Haverão de abençoar”.
Bendito fruto

“Olha o pequi, hoje tá 10 reais o cento”. Assim, no grito, Elias da Silva vai atraindo a clientela no lado externo do Mercado Público do Crato. Era 20 de fevereiro, uma segunda, quando ocorre a feira semanal da cidade. “Um dia, o cento tá de 8 reais, outro de 10. Dá um pouquinho de lucro, chego a ganhar até 5 reais no cento, dá pra levar”, diz o vendedor. Em abril, ele volta a trabalhar com verduras, à espera do novo ciclo do pequi no mês de dezembro.
Para Elias ter esse apurado, há pessoas como a catadora Francisca Souza que passam o ano aguardando a safra. Aos 66 anos, cumpre um ritual que lhe acompanha desde os quatro no Sítio Vassourinhas, na Comunidade Quilombola dos Souza, em Porteiras. Começou a catar pequi com uns seis anos, mas promete que vai continuar por muito tempo: “Isso aqui é um entretenimento pra gente, pra não ficar pensando besteira, tá no mato tá melhor, né? Oxente, enquanto tiver saúde, eu venho”.
Há 18 anos no Mercado Público do Crato, Elias da Silva vende exclusivamente pequi enquanto durar a safra. Foto: Fernanda Siebra 
Parente de dona Francisca, Ricardo da Silva, 41 anos, residente na mesma localidade, caça o fruto quase todo dia. “A renda é muito boa, embora no momento esteja mais barato. Os atravessadores pagam R$ 3,00 pelo cento, e vendem por R$ 10,00, 15,00. A vantagem é que vêm buscar na porta da nossa casa”.
Quando a safra é farta, ele produz óleo e congela o fruto para vender mais caro na Semana Santa. Ricardo também gosta de comer o pequi, mas na infância não era chegado ao fruto: “Detestava até o cheiro. Fui aprendendo com minha mãe. Ela dizia que foi a papa que Nossa Senhora deu a nosso Senhor, e botei aquilo na cabeça, botei gosto. Hoje como de todo jeito”. Em Vassourinha, a safra começou em dezembro. Tardou mais um pouco pra florescer, porque, segundo Ricardo, tem a seca: “Se não chover, perde o carrego, morre muito pequizeiro. A safra deste ano foi fraca. Quando é boa mesmo, por dia se consegue até dois mil pequis”.
Maria Raimunda da Conceição, a dona Lia,  66 anos, cata pequi desde os 8 anos no Sítio Malhada Redonda, em Porteiras: “Com o pequizinho, a gente compra umas coisinhas, compra medicamento, paga prestaçãozinha também. Agradeço muito aos pequizinhos,  é baratinho, 3  reais o cento, mas mesmo assim serve,  né não?”. Foto: Fernanda Siebra
A maior dificuldade para os catadores, na avaliação de Ricardo, tesoureiro da Associação da Comunidade Quilombola de Souza, é ter de andar quilômetros e mais quilômetros para conseguir os frutos. Muitos fazem o percurso casa-mata-casa várias vezes ao dia para levar, aos poucos, o apurado. Acredita que se a comunidade formasse uma cooperativa talvez a renda fosse melhor. Assim como estão fazendo 22 moradores do Sítio Cruzeiro, no Crato, protagonistas do projeto Pequi Vivo.
Curiosidade nesta foto de Jackson Bantim: Três pequis e um formato de coração
Não muito distante do Sítio Vassourinha, há um acampamento do Sítio Barreiro Novo, em Barbalha, habitado, desde os anos 1990, somente durante a safra do pequi (de janeiro a março). No local improvisado, às margens da CE 060, em Barbalha, ficam cerca de 10 famílias, a maioria do Sítio Cacimbas, em Jardim. Quem se instala lá tem a vida diretamente ligada ao fruto nativo da Chapada do Araripe. Uns catam e vendem o pequi, outros só o revendem e seu Pedro Martins produz o óleo. É o único dali com este ofício.
Em outro barraco, encontramos a agricultora Iracir Bernadino, 42 anos, que acabava de regressar da mata: “Fomos ontem, eu, meu marido e mais três filhos. Dormimos lá debaixo de uma lona, com chuva e vento, mas trouxemos só 115 pequis”, comenta. E, em tom de protesto, vai logo dizendo: “Quero fazer uma denúncia. Antes, eu conseguia pegar muitos frutos, de 3 a 4 mil pequis na serra, mas agora a safra está diminuindo demais”.
Segundo Iracir, há grande mortandade de pequizeiros. “Se as autoridades não tomarem providência, infelizmente vai acabar. Por onde a gente anda, onde está desmatado há pequizeiro, mas aqui nas Cacimbas (Jardim) infelizmente não encontramos isso não”.
Acha que a legislação ambiental termina por prejudicar a atividade: “a mata é muito fechada, falta o gado na floresta, porque “gado remoi o pequi e ele mesmo aduba, e ali já é uma mudinha, quando chove”.
Nessa temporada, Iracir começou a vender em outubro, em uma barraquinha da estrada, em frente ao acampamento, mas o pequi vinha do Maranhão. Em janeiro, mudou-se com a família para o local. Mesmo com as dificuldades apontadas pela agricultora, ela comemora uma recente conquista: a compra do carro Pampa, que serve para transportar os frutos.
Entre os jovens do acampamento, merece destaque o neto de seu Pedro Martins, Osmar de Souza, 19 anos, que oferecia o fruto numa barraquinha às margens da rodovia: “Passo três meses aqui. Compro por R$ 5,00 e vendo por 10,00”. Ele até aprendeu a fazer o óleo com o avô, mas considera mais vantajoso comercializar o pequi in natura.
Aos 19 anos, Osmar  de Souza segue a tradição familiar e já trabalha com o pequi. Vende o fruto às margens da CE-060, entre Barbalha e Jardim . Foto: Fernanda Siebra  
Iracir, Pedro e os familiares deixaram o acampamento na segunda-feira, após comemorem o fim da colheita no Dia de São José, 19 de março. Em uma missa, agradeceram pelo fruto nativo da Chapada do Araripe. Agora, é esperar a próxima safra. Quando as famílias, principalmente o incansável Pedro, prometem se instalar novamente no acampamento Barreiro Novo.

Safra do pequi tem importante
papel sócio-econômico

A cadeia produtiva do pequi envolve centenas de pessoas na região do Cariri. Há os catadores, aqueles que, seja noite ou dia, estão sempre em busca do fruto que garantirá o sustento da família durante os meses da safra, entre dezembro e março. O preço varia conforme a oferta. No início e no fim da safra, valem mais. Há os atravessadores, que vão pegam o produto na casa dos catadores. Nesse negócio, fala-se em milheiros. Mil frutos, no mês de fevereiro de 2017, quando a oferta cresceu, estavam custando cerca de R$ 80,00 na fonte. Alguns atravessadores comercializam no varejo, mas geralmente repassam os frutos para os vendedores das barraquinhas das estradas ou em mercados e feiras da Região. No Mercado Público do Crato, por exemplo, o cliente teria de pagar R$ 10,00 por um cento. Há, ainda, quem produz óleo e pratos a base de pequi, além de pesquisas.
Textos: Germana Cabral e Cristina Pioner Fotos: Fernanda Siebra
 Fonte:Diário do Nordeste


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