Aos 66 anos, Francisca de Souza cumpre um ritual
que lhe acompanha desde criança:
catar pequi na região serrana de Porteiras
Durante quatro meses por ano, de janeiro a
abril, nativos da região do Cariri cumprem ritual transmitido de geração a
geração. Homens e mulheres, jovens e idosos, andam incontáveis quilômetros por
dentro das matas para colher a própria sobrevivência. A qualquer hora, seja dia
ou noite, em grupo ou solitários, os catadores disputam cada espaço para
conseguir o melhor apurado possível. O cenário lembra o de um garimpo, porém o
ouro que brota da terra da Chapada do Araripe atende pelo nome de pequi.
“Se o Cariri fosse outrora trecho de
terras, encravado num daqueles impérios, ou por outra na Grécia veneradora da
natureza, teria igualmente a sua árvore sagrada – o pequizeiro. Mas estamos num
país inteiramente cristianizado”, defendeu o escritor J. de Figueiredo Filho,
no artigo “O Pequizeiro” (1939), numa comparação aos povos incas, no Peru, e os
astecas, que veneravam a coca e o cacau, respectivamente.
O povo da Chapada do Araripe também o
considera como tal: "Nós não plantamos, quem tá zelando é a natureza, quem
tá criando é Deus, então tá lá de graça para nós ir buscar", diz Ricardo
da Silva, 41 anos, da Comunidade Quilombola dos Souza, em Porteira. Da mesma
localidade, Francisco Sousa, 66 anos, refere-se igualmente ao presente da
natureza: "Agora, o homem (atravessador) tá comprado barato, mesmo assim é
vantagem, a gente não á comprando o pequi, tá é só caçando".
Há os catadores, que garantem o sustento da
família e os atravessadores, que pegam o fruto direto na fonte. Nesse comércio,
negocia-se em milheiros. Mil frutos, no mês de fevereiro, quando a oferta
cresceu, custavam cerca de R$ 80,00 na fonte. Alguns atravessadores comercializam
no varejo, contudo quase sempre repassam para vendedores das barraquinhas das
estradas, em mercados ou feiras do Cariri.
Há quem produz o óleo, a exemplo de Pedro Martins, de Jardim, no
ofício há 50 anos. Outros capricham nos pratos culinários à base do fruto,
sendo os mais famosos o baião de dois e a pequizada. E há os que pesquisam as
propriedades (medicinais e cosméticas) desta planta nativa da Chapada do
Araripe, cujo nome científico é Caryocar coriaceum.
“Essa espécie é
exclusiva da nossa região. Na Europa, respeitam muito isso, aqui no Brasil não,
acham que todo pequi é pequi. Não é não. É diferente do que existe em Goiás e
Minas Gerais, por exemplo. O nosso tem mais óleo, o deles, mais açúcar. O nosso
puxa mais pra cor creme e branca, o de lá é amarelo-ouro. Essas peculiaridades
vieram de milhares de anos de evolução e precisamos valorizar”, afirma Willian
Brito, engenheiro agrônomo e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Precisa-se valorizar
o próprio pequizeiro. Relatos de catadores e gestores do meio ambiente revelam
a preocupação de as árvores serem preservadas ou mesmo de outras brotarem. Os
versos em cordel de Willian Brito são um aviso: “O cristão que com carinho/O
piqui cuida em plantar/Contribuindo pra fome/Da pobreza aliviar/Deus e nossos
ancestrais/Haverão de abençoar”.
Bendito fruto
“Olha o pequi, hoje tá 10 reais o cento”.
Assim, no grito, Elias da Silva vai atraindo a clientela no lado externo do
Mercado Público do Crato. Era 20 de fevereiro, uma segunda, quando ocorre a
feira semanal da cidade. “Um dia, o cento tá de 8 reais, outro de 10. Dá um
pouquinho de lucro, chego a ganhar até 5 reais no cento, dá pra levar”, diz o
vendedor. Em abril, ele volta a trabalhar com verduras, à espera do novo ciclo
do pequi no mês de dezembro.
Para Elias ter esse apurado, há pessoas como a catadora
Francisca Souza que passam o ano aguardando a safra. Aos 66 anos, cumpre um
ritual que lhe acompanha desde os quatro no Sítio Vassourinhas, na Comunidade
Quilombola dos Souza, em Porteiras. Começou a catar pequi com uns seis anos,
mas promete que vai continuar por muito tempo: “Isso aqui é um entretenimento
pra gente, pra não ficar pensando besteira, tá no mato tá melhor, né? Oxente,
enquanto tiver saúde, eu venho”.
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Há 18
anos no Mercado Público do Crato, Elias da Silva vende exclusivamente pequi
enquanto durar a safra. Foto: Fernanda Siebra
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Parente de dona Francisca, Ricardo da
Silva, 41 anos, residente na mesma localidade, caça o fruto quase todo dia. “A
renda é muito boa, embora no momento esteja mais barato. Os atravessadores
pagam R$ 3,00 pelo cento, e vendem por R$ 10,00, 15,00. A vantagem é que vêm
buscar na porta da nossa casa”.
Quando a safra é farta, ele produz óleo e congela o fruto para
vender mais caro na Semana Santa. Ricardo também gosta de comer o pequi, mas na
infância não era chegado ao fruto: “Detestava até o cheiro. Fui aprendendo com
minha mãe. Ela dizia que foi a papa que Nossa Senhora deu a nosso Senhor, e
botei aquilo na cabeça, botei gosto. Hoje como de todo jeito”. Em Vassourinha,
a safra começou em dezembro. Tardou mais um pouco pra florescer, porque, segundo
Ricardo, tem a seca: “Se não chover, perde o carrego, morre muito pequizeiro. A
safra deste ano foi fraca. Quando é boa mesmo, por dia se consegue até dois mil
pequis”.
Maria Raimunda da Conceição, a
dona Lia, 66 anos, cata pequi desde os 8 anos no Sítio Malhada Redonda,
em Porteiras: “Com o pequizinho, a gente compra umas coisinhas, compra
medicamento, paga prestaçãozinha também. Agradeço muito aos pequizinhos,
é baratinho, 3 reais o cento, mas mesmo assim serve, né
não?”. Foto: Fernanda Siebra
A maior dificuldade para os catadores, na avaliação de Ricardo,
tesoureiro da Associação da Comunidade Quilombola de Souza, é ter de andar
quilômetros e mais quilômetros para conseguir os frutos. Muitos fazem o
percurso casa-mata-casa várias vezes ao dia para levar, aos poucos, o apurado.
Acredita que se a comunidade formasse uma cooperativa talvez a renda fosse
melhor. Assim como estão fazendo 22 moradores do Sítio Cruzeiro, no Crato,
protagonistas do projeto Pequi Vivo.
Curiosidade nesta foto de
Jackson Bantim: Três pequis e um formato de coração
Não muito distante do Sítio Vassourinha, há um acampamento do
Sítio Barreiro Novo, em Barbalha, habitado, desde os anos 1990, somente durante
a safra do pequi (de janeiro a março). No local improvisado, às margens da CE
060, em Barbalha, ficam cerca de 10 famílias, a maioria do Sítio Cacimbas, em
Jardim. Quem se instala lá tem a vida diretamente ligada ao fruto nativo da
Chapada do Araripe. Uns catam e vendem o pequi, outros só o revendem e seu
Pedro Martins produz o óleo. É o único dali com este ofício.
Em outro barraco, encontramos a agricultora Iracir Bernadino, 42
anos, que acabava de regressar da mata: “Fomos ontem, eu, meu marido e mais
três filhos. Dormimos lá debaixo de uma lona, com chuva e vento, mas trouxemos
só 115 pequis”, comenta. E, em tom de protesto, vai logo dizendo: “Quero fazer
uma denúncia. Antes, eu conseguia pegar muitos frutos, de 3 a 4 mil pequis na
serra, mas agora a safra está diminuindo demais”.
Segundo Iracir, há grande mortandade de pequizeiros. “Se as
autoridades não tomarem providência, infelizmente vai acabar. Por onde a gente
anda, onde está desmatado há pequizeiro, mas aqui nas Cacimbas (Jardim)
infelizmente não encontramos isso não”.
Acha que a legislação ambiental termina por prejudicar a
atividade: “a mata é muito fechada, falta o gado na floresta, porque “gado
remoi o pequi e ele mesmo aduba, e ali já é uma mudinha, quando chove”.
Nessa temporada, Iracir começou a vender em outubro, em uma
barraquinha da estrada, em frente ao acampamento, mas o pequi vinha do
Maranhão. Em janeiro, mudou-se com a família para o local. Mesmo com as
dificuldades apontadas pela agricultora, ela comemora uma recente conquista: a
compra do carro Pampa, que serve para transportar os frutos.
Entre os jovens do acampamento, merece destaque o neto de seu
Pedro Martins, Osmar de Souza, 19 anos, que oferecia o fruto numa barraquinha
às margens da rodovia: “Passo três meses aqui. Compro por R$ 5,00 e vendo por
10,00”. Ele até aprendeu a fazer o óleo com o avô, mas considera mais vantajoso
comercializar o pequi in natura.
Aos 19 anos, Osmar de
Souza segue a tradição familiar e já trabalha com o pequi. Vende o fruto às
margens da CE-060, entre Barbalha e Jardim . Foto: Fernanda Siebra
Iracir, Pedro e os familiares deixaram o acampamento na
segunda-feira, após comemorem o fim da colheita no Dia de São José, 19 de
março. Em uma missa, agradeceram pelo fruto nativo da Chapada do Araripe.
Agora, é esperar a próxima safra. Quando as famílias, principalmente o
incansável Pedro, prometem se instalar novamente no acampamento Barreiro Novo.
Safra do
pequi tem importante
papel sócio-econômico
A cadeia produtiva do pequi envolve centenas de pessoas na
região do Cariri. Há os catadores, aqueles que, seja noite ou dia, estão sempre
em busca do fruto que garantirá o sustento da família durante os meses da
safra, entre dezembro e março. O preço varia conforme a oferta. No início e no
fim da safra, valem mais. Há os atravessadores, que vão pegam o produto na casa
dos catadores. Nesse negócio, fala-se em milheiros. Mil frutos, no mês de
fevereiro de 2017, quando a oferta cresceu, estavam custando cerca de R$ 80,00
na fonte. Alguns atravessadores comercializam no varejo, mas geralmente
repassam os frutos para os vendedores das barraquinhas das estradas ou em
mercados e feiras da Região. No Mercado Público do Crato, por exemplo, o
cliente teria de pagar R$ 10,00 por um cento. Há, ainda, quem produz óleo e
pratos a base de pequi, além de pesquisas.
Textos: Germana Cabral e Cristina Pioner Fotos: Fernanda
Siebra
Fonte:Diário do Nordeste
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